O lixo, a reciclagem e a logística reversa no Brasil
Contextualizando a Questão do Lixo
Por Manuel Vieira Siqueira de Arantes
No planeta Terra, a manutenção da vida é condicionada ao funcionamento de vários ciclos, que envolvem movimentos e transformações físicas e químicas na matéria e que possibilitam novas estruturações na natureza. A água, por exemplo, sofre constantes alterações em seu estado físico, como a evaporação e a precipitação, e tem seu ciclo influenciado pela interação com plantas e animais. O carbono, o nitrogênio e o oxigênio são exemplos de elementos da natureza que, nas diferentes etapas dos seus ciclos, passam por transformações químicas. A cadeia alimentar, mecanismo natural que envolve todos os seres vivos do planeta, pode ser interpretada como uma cadeia de energia, na qual cada animal tem sua função: produtor, consumidor ou decompositor. Outro exemplo de ciclo é o da Lua, satélite natural da Terra que executa uma volta ao redor do planeta a cada 27 dias, 7 horas, 43 minutos e 12 segundos. Se houver rompimento em alguma etapa de qualquer um desses ciclos, a vida na Terra estará severamente ameaçada.
O ser humano, devido às inovações técnicas conquistadas durante os últimos dois ou três milênios, e principalmente durante os últimos dois ou três séculos, adquiriu grandes poderes de manipular a natureza e a matéria ao seu favor. Contudo, o aumento desenfreado da exploração humana de recursos naturais, a produção massiva de bens e o consumo acelerado vêm provocando grande acúmulo de resíduos sólidos na natureza, que acabam tendo como destino final mais comum os lixões, os aterros sanitários e os aterros controlados.
Desse modo, a cadeia produtiva não conduz a matéria a um percurso cíclico, como habitualmente ocorre na natureza, mas sim a uma linha reta que começa na extração de recursos naturais e termina no despejo de lixo, não havendo um elo entre esses dois extremos.
Segundo o Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2018/2019, publicado pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), foram geradas, no Brasil, 79 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos (RSU) em 2019, com 92% desse lixo tendo sido coletado. Quanto ao seu destino, 29,5 milhões de toneladas, geradas por 3.001 municípios, acabaram indo para lixões ou aterros controlados, que não são considerados seguros à saúde humana e ao meio ambiente [clique aqui para acessar o Panorama 2018/2019].
As Políticas Públicas de Gestão do Lixo no Brasil
Em 2 de agosto de 2010, com a aprovação da LEI Nº 12.305 [1], foi instituída no Brasil a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), cujo objetivo era promover a eliminação dos lixões e incentivar a redução da geração de lixo, tornando a atividade econômica mais sustentável. No dia 2 de agosto de 2014, o prazo para que todos os municípios do país eliminassem o uso de lixões acabou, mas a realidade ainda era muito distante do que seria desejável: mais de 3,3 mil prefeituras ainda descartavam lixo a céu aberto [2], mesmo com as ameaças de multa de R$ 50 milhões previstas na lei, e 60% das cidades ainda não contava com aterros sanitários.
A ineficácia da LEI Nº 12.305, que vigora há quase 10 anos, resultou em uma nova proposta que está em trâmite na Câmara e no Senado. Segundo relatório aprovado no dia 7 de maio de 2020 pela Comissão Mista, que analisa a medida provisória do novo Marco Legal do Saneamento Básico, os aterros sanitários devem ser implantados até o dia 2 de agosto de 2023 nos municípios com população inferior a 50 mil habitantes. Para as cidades com população entre 50 mil e 100 mil habitantes, o prazo é 2 de agosto de 2022, e em 2 de agosto de 2021, as cidades com mais de 100 mil habitantes não poderão mais utilizar os lixões. As capitais e os municípios de regiões metropolitanas têm até 2 de agosto de 2020 para abandonar o uso dos lixões [3]. A medida provisória, se aprovada, também possibilitará a privatização de empresas estaduais de saneamento básico, assunto que gera grande polêmica e que poderá ser discutido no blog em publicações futuras.
O Programa Lixão Zero [4], lançado pelo Ministério do Meio Ambiente em 2019, é um plano com ênfase na destinação correta dos resíduos sólidos urbanos, e se insere no âmbito da Agenda Nacional de Qualidade Ambiental Urbana. O Plano de Ação desse programa, divulgado em 2019, traz várias medidas e objetivos de curto e médio prazos para a melhoria da gestão do lixo nas cidades, como ampliar a realização da coleta seletiva, aumentar a reciclagem e até explorar o potencial energético dos resíduos sólidos. Contudo, o plano não estabelece metas específicas quanto ao impacto dessas melhorias. Por exemplo: o plano menciona apoiar municípios no encerramento de lixões e aterros controlados, mas não estabelece como os municípios serão ajudados e nem quantas toneladas de lixo deixarão de ser destinadas aos lixões. Os objetivos são muito amplos e pouco concludentes, fazendo do Plano de Ação não mais do que uma mera formalidade (clique aqui para acessar o Plano de Ação do Programa Lixão Zero).
Lixão a céu aberto em cidade brasileira |
A Insuficiente Reciclagem no Brasil
A logística reversa do lixo, como é chamado o processo de reaproveitamento, movimenta 70 bilhões de euros por ano na Alemanha [5], e algumas empresas instaladas no Brasil já realizam a coleta e a reciclagem de suas embalagens, como a Coca-Cola, que lançou o projeto SustentaPet em Osasco (SP), por meio do qual compra embalagens PET usadas e vendem-nas a empresas recicladoras [6]. A Ambev, o Grupo Pão de Açúcar e a startup Green Mining expandem seus projetos de reciclagem de vidro em São Paulo (SP), que é coletado e reinserido no processo produtivo [7]. Na Natura, vigora o Programa Natura Elos, que estabelece a logística reversa da cadeia de reciclagem, com associação entre a empresa e as cooperativas, os recicladores e os fabricantes [8].
Ainda que algumas grandes empresas realizem projetos de logística reversa, e mesmo que existam empresas cuja atividade seja exclusivamente a reciclagem de materiais, o Brasil recicla apenas 3% de todo o lixo que é coletado. Além disso, estima-se que 30% de todo o lixo coletado no Brasil tenha potencial de reciclagem [9], o que significa que quase 22 milhões de toneladas de lixo não precisariam estar sendo descartadas em aterros sanitários e lixões.
Quanto aos materiais reciclados, o Brasil só se sobressai no alumínio, sendo o líder mundial, com taxa de reciclagem de 97,7% [10]. Esse material é mais favorável à logística reversa por possuir valor elevado, de modo que muitos outros materiais recicláveis acabam sendo descartados por não serem muito viáveis ao reaproveitamento.
Embora seja um dos países do mundo que mais geram lixo plástico [11], o Brasil não possui reciclagem expressiva desse material, que pode levar até 400 anos para se decompor na natureza. Por ser altamente nocivo ao meio-ambiente, o plástico vem sofrendo restrições de uso em mais de 50 países do mundo [12], incluindo os integrantes da União Europeia, local onde objetos descartáveis feitos de plástico serão proibidos a partir de 2021 [13] (Aos que se interessam pelo assunto do descarte de plástico na natureza, recomendo o documentário Oceanos de Plástico, de 2016, dirigido por Craig Leeson, disponível na Netflix).
Considerações Finais
Embora o lixo não seja responsabilidade única do Estado, é espantoso constatar que o Brasil é um dos poucos países do mundo onde a reciclagem não foi considerada uma atividade essencial durante a pandemia [14], o que, junto com a ineficácia das leis e das políticas públicas, mostra o descaso do governo com a sustentabilidade.
Para que o Brasil se torne um país mais sustentável, deve haver a consciência de que o lixo é responsabilidade de todos: governo, empresas e indivíduos, e que ações unilaterais dificilmente surtirão resultados satisfatórios. Dentre os deveres imediatos do Estado, enquadram-se a ampliação da coleta de lixo para níveis próximos de 100%, a separação e a correta destinação dos resíduos sólidos e o alinhamento da postura brasileira com a União Europeia quanto às políticas de proibição de objetos plásticos descartáveis. Quanto às empresas, seria necessário que mesmo os pequenos empreendimentos se responsabilizassem pela sua própria geração de lixo, praticando a reciclagem das embalagens produzidas e optando por produtos e embalagens menos poluentes. Já os indivíduos devem ter consciência de que o lixo de sua casa não é insignificante perante o montante de lixo produzido no Brasil, devendo realizar a separação do lixo entre orgânico e inorgânico e reciclável e não-reciclável, buscando sempre que possível consumir produtos ecologicamente corretos, também conhecidos como produtos verdes.
Há quem diga que a geração de lixo é irreversível e que não há nada que possa ser feito para solucionar o problema, mas essa afirmação é demasiado letárgica para que possa ser levada a sério. O lixo é um problema criado pela humanidade, cabendo, portanto, à própria humanidade o ato de administrá-lo. Caso nada seja feito a respeito do lixo, as gerações futuras sofrerão com as mazelas decorrentes da contaminação de lençóis freáticos, da escassez de recursos naturais, da contaminação de oceanos e da poluição das cidades, e se depararão com um mundo muitas vezes mais devastado do que o atual.
A logística reversa é a melhor solução existente para o problema e deve ser implantada. Fonte: Gazeta do Povo |
"Espera mil anos e verás que será precioso até o lixo deixado atrás por uma civilização extinta." ASIMOV, Isaac.
Recomendação de leitura: A História Das Coisas - da Natureza Ao Lixo, o Que Acontece Com Tudo Que Consumimos, de Annie Leonard.
- Leia o texto de ontem sobre a escassez de recursos naturais
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