Por que um Bitcoin vale mais que uma casa?

 Por Manuel Vieira Siqueira de Arantes

Tempo de leitura: 7 minutos

        Como uma misteriosa moeda que só existe no mundo digital pode valer mais que uma casa? Quando recebe a resposta, a pessoa que perguntou geralmente não fica muito satisfeita, pois esperava algo que fizesse mais sentido do que coisas do tipo: “vale isso porque as pessoas acreditam em seu valor”, “vale isso porque é a moeda do futuro” ou “vale isso porque minerar bitcoins custa muito caro”.

            Em 2010, quando a criptomoeda não valia nem um dólar, o custo de mineração também existia, mas o bitcoin sequer aparecia no radar do mercado financeiro. Era algo irrelevante e misterioso. Entre 2014 e 2017, no entanto, houve o primeiro boom do bitcoin, que chegou a valer mais de 13 mil dólares. Em 2021, a moeda chegou ao seu maior patamar, sendo negociada, em outubro, por mais de 62 mil dólares, o equivalente a quase 350 mil reais.

            Embora sites especializados em investimentos justifiquem o primeiro boom por conta de avanços na regulamentação do bitcoin no Japão ou por recomendações feitas por bancos de investimento famosos, é preciso atentar para o fato de que a criptomoeda não apresentou realmente nenhuma mudança essencial no período. Apesar das negociações com a moeda terem aumentado, o bitcoin continuou sendo um símbolo digital misterioso e sem lastro. Se o valor da moeda virasse pó de um dia para o outro, nenhum governo ou instituição se encarregaria de solucionar o problema.

            Assim, é preciso entender que o valor do bitcoin e de outras criptomoedas possui uma variante elementar: a confiança. Parece vago, mas a confiança é o que mantém de pé o dólar, o real, todas as demais moedas fiduciárias, as criptomoedas famosas, os preços das ações e a cotação da arroba do boi gordo no mercado futuro.

            Há 70 mil anos atrás, tinha início um longo processo de transformação da forma de pensar do homo sapiens que mudaria o mundo para sempre: a Revolução Cognitiva. O desenvolvimento da capacidade de abstração do cérebro dos sapiens foi algo fundamental para a sua consolidação no topo da cadeia alimentar. Formar grupos grandes de humanos se tornava mais fácil, tendo em vista que uma crença comum em determinados deuses, mitos ou histórias constitui uma ferramenta poderosa de cooperação social. Sociedades antigas famosas, como o Egito Antigo e os maias, funcionavam com base na crença comum em deuses. Milhares de pessoas vivendo juntas não passariam a vida construindo pirâmides e nem se sujeitariam a sacrifícios religiosos se não tivessem crenças em comum. [1]

            No mundo moderno, isso não é diferente. Cada ser humano possui sua própria consciência e seu conjunto de crenças, formando a sua subjetividade. Na rede de comunicação que liga as várias subjetividades é formada a intersubjetividade, e muitas das forças mais importantes da história são intersubjetivas, como o dinheiro, as leis, os deuses e as nações. Isso significa que essas forças intersubjetivas só existem na cabeça de cada ser humano, formando um mundo à parte do que se costuma chamar de realidade objetiva, que é formada pelas coisas que realmente existem no mundo, o ser humano acreditando ou não, como as árvores e a radioatividade.

            A intersubjetividade é como se fosse a junção das partes comuns da subjetividade de cada indivíduo, formando um conceito abstrato de ordem que paira sobre nós. Esse conceito abstrato nos fornece ordens imaginadas de como a vida deve ser vivida.

            Você certamente já foi influenciado por essas ordens imaginadas. Pense nas suas aspirações de vida, coisas que você deseja fazer ou ter antes de morrer. Ter uma casa com piscina? Viajar para o exterior? Juntar dinheiro para se aposentar mais cedo? Essas são aspirações às quais cada ser humano moderno é exposto desde o nascimento na maioria dos lugares do mundo. Pode parecer óbvio que todo ser humano deseje alguma dessas coisas, mas isso não era assim em sociedades antigas. A grande aspiração de vida de um maia poderia ser, por exemplo, morrer jovem em sacrifício aos deuses, e isso não era loucura na época.

Portanto, a ordem imaginada influencia a forma de pensar de cada indivíduo, possibilitando a existência dos pilares que regem nossa civilização, que são pilares subjetivos e inexistentes fora do mundo humano. Desse modo, a moeda, como força intersubjetiva, só possui valor porque existe a crença comum de que ela possui valor. A moeda já existia muito antes de você nascer, e a ordem imaginada moldou a sua forma de pensar para que entenda que a moeda possui valor entre os humanos.

            No entanto, o real não deixaria de existir só porque você não acredita no seu valor, pois isso não alteraria a intersubjetividade. Já se a maioria dos brasileiros deixassem de acreditar no valor do real, uma drástica mudança ocorreria na intersubjetividade, ameaçando o valor que a sociedade atribui a esse símbolo que chamamos de moeda. Essa grande perda da confiança em uma moeda tradicional é o fenômeno chamado de hiperinflação, que afetou o Brasil de meados da década de 1980 até 1994.

            Analogamente, se uma única pessoa passar a acreditar que um bitcoin vale 62 mil dólares, isso não mudará nada a intersubjetividade, mas se muitas pessoas passarem a ver o bitcoin como algo de valor, seu valor na sociedade pode realmente aumentar.

            Assim, o bitcoin também sofre oscilações provenientes do aumento ou da diminuição da confiança em seu valor. Logo após o primeiro boom, vários países impuseram medidas de regulamentação de criptomoedas entre 2017 e 2019, afetando o otimismo então vigente e inaugurando um curto período de queda abrupta do valor da moeda. Entre novembro de 2017 e janeiro de 2019, o valor do bitcoin em dólares caiu mais de 75%, e a moeda só voltou ao antigo patamar em setembro de 2020. A partir de então, com medidas de aumento da escassez da moeda e com grandes empresas passando a aceitar pagamentos em bitcoin, como PayPal e Tesla, o valor da criptomoeda mais do que quadruplicou.

            Há outras razões para as oscilações do bitcoin e elas não serão abordadas nesse artigo, pois o que importa dizer aqui é que o aumento da confiança, ou a modificação das subjetividades de vários indivíduos no mesmo momento, é a causa primordial da valorização das criptomoedas.

            Por qual razão as pessoas decidiram colocar dinheiro em um símbolo digital misterioso e sem lastro? O estopim pode ter sido causado pelo aumento do interesse nas criptomoedas, seja por razões ideológicas ou pela ideia (pouco plausível, na época) de que ocorreria uma valorização. A verdade é que existiram (e ainda existem) muitas criptomoedas que não vingaram. Aliás, quando o bitcoin caiu abruptamente em 2018, mais de 800 criptomoedas viraram pó.

            A análise do sucesso do bitcoin é uma análise feita sob o viés do sobrevivente, isto é, as pessoas olham para o bitcoin como exemplo de criptomoeda que deu certo, mas se esquecem, ou desconhecem, que milhares de outras criptomoedas parecidas não funcionaram. A confiança na maioria das criptomoedas não foi grande o bastante para que elas se valorizassem, por qualquer razão que seja.

            A conclusão que se pode tirar disso é que se você pretende comprar criptomoedas, compre as mais famosas, as mais negociadas no mercado, ou compre pequenas quantidades. Se comprar uma criptomoeda pouco conhecida esperando grandes valorizações, pode acabar sem nada. Afinal, isso tudo surgiu porque alguém teve a ideia de fazer computadores resolverem determinados problemas matemáticos ganhando frações de um símbolo digital como recompensa, e as pessoas passaram a acreditar que alguns desses símbolos possuem valor. Você realmente quer arriscar seu patrimônio nisso? Se sim, boa sorte, mas melhor não arriscar tudo.

Diferentemente das moedas tradicionais (fiduciárias), ninguém vai salvar o bitcoin se ele afundar. Você corre mais risco de perder tudo se colocar seu dinheiro em criptomoedas em vez de mantê-lo na forma de moeda fiduciária, que possui lastro, o que significa que a autoridade monetária do país tentará, em caso de emergência, restaurar os ânimos em relação à moeda, como aconteceu nas décadas de 80 e 90 no Brasil. As pessoas podem não confiar mais na moeda local, mas dificilmente deixarão de confiar na autoridade do governo, na autoridade monetária e nas demais moedas fiduciárias do mundo tudo ao mesmo tempo, então é mais difícil que um colapso total ocorra. Existem medidas de política monetária, fiscal e cambial que conhecidamente podem controlar a inflação.

Embora o nome envolva moeda, a maioria das pessoas não enxerga as criptomoedas como moedas de fato, mas sim como ativos com potencial de valorização. Poucas pessoas, por enquanto, adquirem bitcoins para fazer compras no shopping, até porque são poucas as lojas que os aceitam. Dessa forma, quem compra é porque quer vender mais caro no futuro, mas e quando o valor da moeda se estabilizar? As pessoas vão aceitar migrar das moedas fiduciárias, conhecidamente mais seguras, para usar uma moeda mais arriscada, um símbolo digital sem lastro?

             Enquanto esse dia não chega, pode-se dizer que o mundo está aceitando a ideia de uma moeda digital. Em outras palavras, a intersubjetividade está sendo modificada, passando a considerar o bitcoin e as demais criptomoedas como coisas de valor. O amadurecimento da ideia (ou do símbolo) levou El Salvador a adotar o bitcoin como moeda legal no dia 7 de setembro de 2021, se tornando o primeiro país do mundo a fazer isso, e muitos países possuem índices de utilização de bitcoins relativamente altos, como mostra a imagem abaixo. Contudo, se essa mudança veio para ficar ou se é apenas euforia, só o tempo poderá dizer.


[1] HARARI, Yuval Noah. Sapiens: Uma breve história da humanidade. 2013.

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